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A MORTE NÃO INTERROMPE O SHOW

Bruno Silva Quirino

Em 29 de abril de 1994, Rubens Barrichelo decolou com seu carro numa curva, batendo muito forte na barreira de pneus. Segundo os médicos, o piloto “ficou morto por 6 minutos”. Era o dia de treinos livres para o Grande Prêmio de San Marino, o terceiro daquela temporada de Fórmula 1.

Embora a vida de Rubinho corresse risco, o espetáculo não foi interrompido. No sábado, os demais pilotos voltaram à pista. Num acidente até plasticamente menos terrível que o de Rubinho, o holandês Roland Ratzenberger não teve a mesma sorte do brasileiro. Morreu na pista.

Comoção geral. Ainda assim, ninguém pensou em suspender a programação normal. Se Ratzenberger “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, foi preciso apenas retirar o que sobrou dele e do carro para que os sobreviventes continuassem divertindo o povo.

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No domingo, 1º de maio, o brasileiro Ayrton Senna passou reto na curva Tamburello e se chocou em altíssima velocidade contra o muro de proteção. A sua última imagem pública mostrou o clássico capacete amarelo pendendo para o lado, quando, provavelmente, expirou.

Ora, se na sexta-feira acidentara-se terrivelmente um iniciante, no sábado morrera um desconhecido austríaco, na corrida propriamente dita a tragédia envolvia o maior nome da Fórmula 1 de então. Tricampeão do mundo, recordista de vitórias e pole-positions, acabara de assumir o volante da Williams, equipe vencedora dos campeonatos de 1992 e 1993. Senna era a cara daquele esporte.

Nem isso foi suficiente para que a organização pensasse em parar por um momento. A corrida não foi suspensa. Quem não morreu continuou na pista. Michael Schumacher, jovem promissor da equipe Benetton, venceu. O champagne foi estourado no pódio, o público pagou, os patrocinadores ficaram felizes, as contas bancárias engordaram.

Morte é inevitável, vida que segue. Okay, mas tem que seguir assim, por cima de cadáveres ainda quentes, de cabeças pendentes, de enterros previstos?  Tinha que ter corrida depois do acidente de Rubinho, depois da morte de Ratzenberger, depois da tragédia com Senna?

Na última sexta-feira, 17 de novembro de 2023, num estádio no Rio de Janeiro, Ana Clara Benevides morreu, provavelmente por razões ligadas ao calor absurdo piorado pelas condições preparadas pelos organizadores (falta de acesso a água, ambiente com materiais que retêm calor e outros). Cerca de mil pessoas passaram mal no mesmo dia, no mesmo lugar.

O show tem que continuar. A morte da moça não pode prejudicar os lucros, portanto tomou-se a iniciativa de manter o show do dia seguinte, decisão da qual se recuou apenas duas horas antes do início, quando o estádio já estava lotado de gente, sob o mesmo calor e as mesmas condições que, acredita-se, mataram Ana Clara, que viajara de avião pela primeira vez pra ver seu ídolo cantar.

Taylor Swift subiu ao palco no domingo, sem incômodos e, na segunda-feira, estará lá novamente para compensar aqueles que foram frustrados no sábado.

A organização foi obrigada a restituir os valores a quem havia comprado ingresso para o sábado e não quis ou não pôde estar presente na segunda-feira. Mas deu seu jeitinho de vender os tickets remanescentes, evitando o tal do prejuízo.

Muito ocupados em garantir que as cortinas não baixassem, as bilionárias entidades em torno de Taylor Swift não cuidaram de saber como é que a família da fã morta faria pra levar o corpo do Rio de Janeiro para o Mato Grosso. Foi preciso que amigos organizassem uma vaquinha pra garantir a despedida final.

Os entes bilionários estavam muito ocupados com isso e não tiveram tempo de saber como é que Ana Clara chegaria ao Mato Grosso. Uma vaquinha pagou o traslado.

Na apresentação de domingo, a cantora também não se lembrou de homenagear Ana Clara. Dizem que foi orientação jurídica. Afinal, o show tem que continuar…

Os dois exemplos aqui citados deixam claro, para mim, que precisamos de um capitalismo mais humanizado. E esse será assunto para uma próxima coluna.

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