Brasil

Avanços e desafios nos direitos da pessoa idosa ou com deficiência em 35 anos da Constituição e do STJ

A cidadania plena não é aquela que garante vários direitos a um número limitado de pessoas, mas a que assegura todos os direitos ao maior número possível delas, dando-lhes, assim, a noção de equidade social. Se, por falta de acesso ao transporte público, uma idosa não consegue comparecer ao local de votação no dia das eleições, seus direitos de cidadã foram violados. Ou se alguém com deficiência não tem acessibilidade para estudar ou trabalhar, falha a república cuja Constituição proclama a cidadania como um de seus fundamentos.

Em uma nação marcada por desigualdades, o ordenamento jurídico cumpre o papel de assegurar a proteção de pessoas vulneráveis e a inclusão social de grupos historicamente marginalizados: negros, mulheres, indígenas, LGBT+ e outros tantos. Em homenagem aos 35 anos da Constituição Cidadã, esta quinta matéria da série Faces da Cidadania, produzida pela Secretaria de Comunicação Social do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aborda os direitos das pessoas idosas ou com deficiência.

Responsabilidades compartilhadas por todos

Em relação às pessoas idosas, o texto promulgado em 1988 estabeleceu o amparo a esse grupo como dever comum da família, da sociedade e do Estado.

Em 2003, o Estatuto da Pessoa Idosa instituiu direitos e garantias especiais, que incluem diretrizes como prioridade absoluta na formulação e no atendimento de políticas sociais públicas; gratuidade no transporte coletivo urbano, intermunicipal e interestadual; proteção contra a violência e o abuso; e prioridade nos processos judiciais. E, desde 2015, o Brasil é signatário da Convenção Interamericana sobre os Direitos das Pessoas Idosas, instrumento jurídico elaborado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) com o objetivo de estabelecer padrões regionais para promoção e proteção desse grupo social.​​​​​​​​​

Direito ao trabalho e à educação e acessibilidade em espaços públicos e privados estão presentes no Estatuto da Pessoa com Deficiência.

A legislação que garante direitos à pessoa com deficiência (PcD) também vem sendo aprimorada nos últimos 35 anos. A Carta Magna determinou que cabe conjuntamente a todas as unidades federativas cuidar da saúde, da proteção e da integração social da população com deficiência. A partir daí, vários instrumentos legais foram adotados para cumprir os mandamentos constitucionais, a exemplo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que passou a vigorar no país com status de emenda constitucional em 2009, e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), de 2015.

O STJ confere materialidade à sua alcunha de Tribunal da Cidadania ao implementar, de maneira uniforme em todo o país, os direitos que, por muito tempo, foram negados a amplas parcelas da população.

A vocação do Poder Judiciário frente aos grupos marginalizados

Para Flávia Piovesan, professora de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a Constituição de 1988 foi um marco tanto da transição brasileira para a democracia quanto da institucionalização dos direitos humanos no ordenamento jurídico nacional.

A jurista, especializada em direitos humanos, acredita que a Carta Magna se consolidou como elemento primordial para assegurar visibilidade e proteção jurídica especial a pessoas em situação de vulnerabilidade. De acordo com Flávia, essa proteção a grupos que sofrem discriminação histórica e estrutural – caso de pessoas idosas ou com deficiência – é muito significativa, principalmente quando são levadas em conta as interseccionalidades, como as perspectivas de gênero ou raça.

Flávia Piovesan destaca o papel do STJ – e do Poder Judiciário como um todo – na defesa da cidadania dessas pessoas: “Entendo que a maior vocação do Poder Judiciário é proteger direitos, e ela tem sido honrada com primor pela Corte da Cidadania”.

Cidadania e dignidade no envelhecimento

O ministro Sérgio Kukina considera que, embora tenha demorado 15 anos para que o reconhecimento dos direitos da pessoa idosa na Constituição fosse regulamentado, a aprovação da lei resultou em uma norma que invoca como matriz a doutrina da proteção integral: a lei não só contempla direitos, mas leva em conta as condições próprias da idade para o seu exercício.

Um exemplo da proteção integral a que o ministro se refere foi a decisão tomada na MC 25.053, sob sua relatoria. O acórdão garantiu a concessão de um percentual dos rendimentos a casal de idosos que teve os investimentos e a única conta bancária bloqueados em função de dívida tributária com a Fazenda Nacional. A decisão levou em consideração a proteção devida em função da avançada idade do casal.

Em 2014, o STJ definiu que o Estatuto da Pessoa Idosa é norma imperativa e de ordem pública. Significa dizer que seu interesse social é implícito e exige aplicação imediata em todas as relações jurídicas de trato sucessivo. O entendimento se deu no julgamento do REsp 1.280.211, em que se considerou abusivo o reajuste na mensalidade do plano de saúde de uma consumidora idosa.

Desafio da cidadania para uma população em crescimento

Dados do Censo Demográfico de 2022 apontam que o número de pessoas com 65 anos de idade ou mais no Brasil cresceu 57,4% em 12 anos, alcançando 10,9% dos habitantes do país. Em um cenário em que a fatia da população considerada idosa (com mais de 60 anos) cresce continuamente, também tende a aumentar o desafio do Poder Judiciário na tarefa de garantir a efetivação de seus direitos e, como consequência, o exercício de sua cidadania.​​​​​​​​​

Para o advogado Mauro Moreira Freitas, vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI), a cidadania plena para essa população pressupõe um tratamento igualitário. Ele entende que o direito de participar da elaboração e da implementação de políticas públicas, o acesso a serviços públicos e privados, e o respeito à manifestação de vontade conferem dignidade às pessoas na fase do envelhecimento.

“O Estatuto da Pessoa Idosa é uma das ferramentas que obriga a família, a sociedade e o Estado a lhes conferir esse tratamento igualitário”, declarou.

Proteção integral inclui o direito à locomoção e ao lazer

Um decisão do tribunal que reforça a proteção aos idosos foi a proferida no REsp 1.543.465, em que se afirmou a necessidade de assegurar sua participação na comunidade, seu bem-estar e sua dignidade. A decisão definiu que as taxas de pedágio e de utilização de terminais rodoviários estão incluídas na gratuidade das vagas asseguradas aos idosos nos ônibus interestaduais. Assim, ficou garantido a esse público o direito de adquirir a passagem interestadual gratuitamente, sem pagar taxas adicionais.

Julgamento semelhante ocorreu no REsp 1.512.087, em que o STJ reconheceu o direito dos idosos ao desconto legal de 50% em um serviço de ônibus que levava os passageiros aos principais pontos turísticos de Curitiba.

O caso envolvia ação civil pública em que o Ministério Público do Paraná buscava a isenção ou a redução do valor da tarifa, em no mínimo 50%, para os usuários do serviço com 65 anos de idade ou mais. Para o tribunal, como o serviço era diretamente vinculado ao lazer – visita a pontos turísticos da cidade –, o idoso tinha direito ao desconto legal de 50% no valor do ingresso, nos termos do Estatuto da Pessoa Idosa.

Pessoas com deficiência e o exercício de direitos em condição de igualdade

Diferentemente do que ocorreu com o Estatuto da Pessoa Idosa, que só foi publicado 15 anos após a Constituição de 1988, a Lei 7.853 – um marco importante para a promoção da inclusão social da PcD – entrou em vigor já em 1989.

Desde então, a legislação passou por atualizações que culminaram na publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, com um amplo escopo de proteção que, entre outros direitos, assegura a inserção no mercado de trabalho e no sistema educacional, além de atender demandas de acessibilidade em espaços públicos e privados.

Embora esses direitos estejam salvaguardados por lei, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2022, em parceria do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, constatou que as pessoas com deficiência ainda têm menos acesso à educação, ao trabalho e, portanto, à renda.

De acordo com a pesquisa, apenas uma em cada quatro pessoas de 25 anos ou mais com deficiência concluiu o ensino básico, e somente uma em cada quatro em idade de trabalhar estava ocupada.

Tribunal da Cidadania torna efetivos os direitos assegurados na legislação

A plena realização dos direitos que a legislação reconhece para a PcD não depende somente do Estado, mas também da família, das empresas e de toda a sociedade.

Foi com essa perspectiva que a Terceira Turma do STJ, no REsp 2.041.463, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, condenou um estabelecimento comercial a construir rampa de acesso e a indenizar por danos morais o autor da ação – um homem com deficiência que, devido à falta de adaptações, não conseguia entrar no prédio com sua cadeira de rodas.

Ao julgar o REsp 1.315.822, o mesmo colegiado, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, manteve a condenação do Banco do Brasil a adotar documentos em braile para os clientes com deficiência visual. Na mesma linha, a Quarta Turma, em julgamento que teve como relator o ministro Luis Felipe Salomão (REsp 1.349.188), decidiu que o Banco Santander deveria confeccionar documentos em braile.

Muitas vezes, é a própria administração pública que falha em seu dever de assegurar o respeito aos direitos da PcD. No REsp 1.563.459, o ministro Francisco Falcão determinou a adaptação de prédios públicos a fim de garantir o acesso de eleitores com deficiência a seus locais de votação.

Relator do RMS 51.880, o ministro Sérgio Kukina anulou decisão administrativa que havia eliminado um candidato aprovado em concurso público nas vagas destinadas a PcDs, sob a alegação de incompatibilidade da deficiência com as atribuições do cargo. De acordo com o relator, a compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência do candidato somente poderia ser aferida durante o estágio probatório.

Reconhecimento do transtorno do espectro autista como deficiência

Desde a promulgação da Constituição de 1988, passando pela publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, o Brasil tem experimentado um movimento crescente pela inclusão social das PcDs. Com o passar do tempo, a necessidade de regulamentação de deficiências específicas impulsionou alterações na legislação.

A complexidade do transtorno do espectro autista (TEA) e a diversidade de suas manifestações levaram, em 2012, à criação da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. A norma determina que pessoas com TEA devem ser consideradas, para todos os efeitos legais, pessoas com deficiência.

Além de assegurar direitos relacionados a questões específicas, como estímulo ao diagnóstico precoce e atendimento multiprofissional, a política prevê a possibilidade de emissão da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea). O documento facilita a identificação da deficiência, proporcionando acesso e atendimento prioritários em serviços públicos e privados, já que, muitas vezes, o nível de comprometimento das pessoas com TEA é imperceptível.

TEA nas decisões do tribunal

A importância do atendimento multidisciplinar no tratamento de autismo está no centro de algumas das mais importantes decisões do STJ sobre o tema. A Terceira Turma do tribunal, no julgamento do REsp 2.043.003, sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, entendeu que os planos de saúde são obrigados a cobrir terapias especializadas prescritas para TEA.

No mesmo sentido, no REsp 1.901.869, de relatoria do ministro Moura Ribeiro, a Terceira Turma decidiu que os planos de saúde não podem limitar as sessões com profissionais como fonoaudiólogos, psicólogos e fisioterapeutas para o tratamento contínuo de autismo infantil.

Sociedade civil é aliada na defesa dos direitos da PcD

Instituições da sociedade civil também são importantes aliadas na defesa dos direitos das PcDs. O Instituto Jô Clemente (IJC) é uma organização sem fins lucrativos que apoia a inclusão de pessoas com deficiência intelectual, transtorno do espectro autista (TEA) e doenças raras.

Para a coordenadora da área de Defesa e Garantia de Direitos do IJC, Deisiana Paes, o acesso à cidadania plena está relacionado à superação das barreiras que impedem a participação social das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais.

Segundo Deisiana, a atuação coletiva e a ação política são importantes para viabilizar os avanços legislativos e institucionais. Ela apontou a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista como exemplo: conhecida como Lei Berenice Piana, a norma foi batizada com o nome de uma mãe que encontrou muitas dificuldades para diagnosticar seu filho e foi ao Congresso Nacional pleitear direitos.

“Não basta a existência formal dos direitos das pessoas com deficiência para garantir o exercício da cidadania. É necessário atuar coletivamente para a vigilância desses direitos e agir politicamente quando necessário”, afirmou Deisiana Paes.

O IJC oferece acompanhamento de assistentes sociais, psicólogos e advogados. Ao longo de 2023, prestou atendimento jurídico e social a quase 14.500 pessoas. Saiba mais no site do IJC.

Compromisso com acessibilidade e inclusão

Em 2009, quando tomou a frente na gigantesca tarefa de levar o Judiciário para a era digital, o STJ também deu início a um de seus projetos de inclusão mais duradouros: a contratação de trabalhadores surdos para a digitalização do acervo de processos físicos da corte.

Com a contribuição dessa equipe, o STJ se transformou no primeiro tribunal digital do país. Após a conclusão da digitalização do acervo, os colaboradores com deficiência passaram a atuar em outras atividades, como a captura eletrônica de ementas dos acórdãos, a inclusão do número único dos processos e o auxílio à autuação.

Também foram celebrados acordos de cooperação com outros órgãos do Poder Judiciário para digitalização de seus acervos, entre eles o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e, mais recentemente, o TRF da 6ª Região. O projeto, que completa 15 anos em 2024, conta atualmente com 137 colaboradores, entre pessoas surdas e intérpretes.

O feito é celebrado pela Coordenadoria de Acessibilidade e Inclusão do tribunal. A chefe da unidade, Simone Pinheiro Machado, ressaltou a importância de se compreender o impacto desse trabalho na cadeia de valor do STJ não apenas sob a perspectiva da inclusão, mas considerando ainda as diferentes competências demonstradas pelos colaboradores envolvidos em tais atividades.

“O projeto estimula o respeito à dignidade das pessoas com deficiência com base no reconhecimento de seus talentos e habilidades”, declarou.

Outras iniciativas de inclusão no STJ

Há quase 20 anos desenvolvendo ações inclusivas, o tribunal leva em conta essa diretriz em seu esforço contínuo para melhorar a prestação de serviços ao público.

O tribunal elegeu a acessibilidade como um dos valores institucionais de seu Plano Estratégico 2021-2026 e, em 2023, realizou consulta pública para atualizar a Política de Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência ou com Mobilidade Reduzida. A publicação do novo documento está prevista para ocorrer ainda no primeiro semestre de 2024.

Entre as iniciativas vigentes nessa área, destacam-se a adoção da Língua Brasileira de Sinais (Libras) na transmissão de eventos e sessões de julgamento, a oferta de dispositivos de visão artificial (OrCam) para pessoas com deficiência visual e a Sala Acessível do Balcão Virtual, destinada a usuários com deficiência ou com algum tipo de limitação.

Além disso, o STJ está alinhado à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), cujos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) contemplam diretrizes como saúde e bem-estar para todos, em todas as idades (ODS 3); redução das desigualdades (ODS 10); e cidades e comunidades inclusivas e sustentáveis (ODS 11).

Fonte: STJ

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